Discurso de Lula em Davos
(27/01/03)
Boa tarde.
Estou chegando, como vocês sabem, diretamente de Porto Alegre, onde participei do Fórum Social Mundial, e falei a dezenas de milhares de pessoas sobre os mesmos assuntos de que pretendo tratar aqui.
A Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial tem como tema central a construção da confiança. Sinto-me muito à vontade com esse tema. Sou depositário da confiança do povo brasileiro, que me atribuiu a responsabilidade de conduzir um país de 175 milhões de habitantes, uma das maiores economias industriais do planeta. Mas um país que convive, também, com enormes desigualdades sociais.
Trago a Davos o sentimento de esperança que tomou conta de toda a sociedade brasileira. O Brasil se reencontrou consigo mesmo, e esse reencontro se expressa no entusiasmo da sociedade e na mobilização nacional para enfrentar os enormes problemas que temos pela frente.
Aqui, em Davos, convencionou-se dizer que hoje existe um único deus: o mercado. Mas a liberdade de mercado pressupõe, antes de tudo, a liberdade e a segurança dos cidadãos.
Respondi, de forma serena e madura, aos que desconfiaram dos nossos compromissos, durante a campanha eleitoral. Na Carta ao Povo Brasileiro, reafirmei a disposição de realizar reformas econômicas, sociais e políticas muito profundas, respeitando contratos e assegurando o equilíbrio econômico.
O Brasil trabalha para reduzir as disparidades econômicas e sociais, aprofundar a democracia política, garantir as liberdades públicas e promover, ativamente, os direitos humanos.
A face mais visível dessas disparidades são os mais de 45 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. O seu lado mais dramático é a fome, que atinge dezenas de milhões de irmãos e irmãs brasileiras.
Por essa razão, fizemos do combate à fome nossa prioridade. Não me cansarei de repetir o compromisso de assegurar que os brasileiros possam, todo dia, tomar café, almoçar e jantar.
Combater a fome não é apenas tarefa do Governo, mas de toda a sociedade. A erradicação da fome pressupõe transformações estruturais, exige a criação de empregos dignos, mais e melhores investimentos, aumento substancial da poupança interna, expansão dos mercados no país e no exterior, saúde e educação de qualidade, desenvolvimento cultural, científico e tecnológico.
Urge que o Brasil promova a reforma agrária e retome o crescimento econômico, de modo a distribuir renda. Estabelecemos regras econômicas claras, estáveis e transparentes. E estamos combatendo, implacavelmente, a corrupção. Nossa infra-estrutura deverá ser ampliada, inclusive com a participação de capitais estrangeiros.
Somos um país acolhedor. A tolerância e a solidariedade são características do povo brasileiro. Temos uma força de trabalho qualificada, apta para os grandes desafios da produção neste novo século.
A retomada do desenvolvimento requer a superação dos constrangimentos externos. O Brasil tem de sair desse círculo vicioso de contrair novos empréstimos para pagar os anteriores. É necessário realizar um extraordinário esforço de expansão do nosso comércio internacional, em particular das nossas exportações, diversificando produtos e mercados, agregando valor àquilo que produzimos.
Todo o esforço que estamos fazendo para recuperar, responsavelmente, a economia brasileira, no entanto, não atingirá plenamente seus objetivos sem mudanças importantes na ordem econômica mundial. Queremos o livre comércio, mas um livre comércio que se caracterize pela reciprocidade. De nada valerá o esforço exportador que venhamos a desenvolver se os países ricos continuarem a pregar o livre comércio e a praticar o protecionismo.
As mudanças da ordem econômica mundial devem passar, também, por uma maior disciplina no fluxo de capitais, que se deslocam pelo mundo, ao sabor de boatos e de especulações subjetivas e sem fundamento na realidade.
É necessário que a comunidade internacional dê sua contribuição para impedir a evasão ilegal de recursos, que buscam refúgios em paraísos fiscais. Maior disciplina nessa área é fundamental para o decisivo combate ao terrorismo e à delinqüência internacionais, que se alimentam da lavagem de dinheiro.
A construção de uma nova ordem econômica internacional, mais justa e democrática, não é somente um ato de generosidade, mas, também, e principalmente, uma atitude de inteligência política.
Mais de dez anos após a derrubada do Muro de Berlim, ainda persistem "muros" que separam os que comem dos famintos, os que têm trabalho dos desempregados, os que moram dignamente dos que vivem na rua ou em miseráveis favelas, os que têm acesso à educação e ao acervo cultural da humanidade dos que vivem mergulhados no analfabetismo e na mais absoluta alienação.
É necessário, também, uma nova ética. Não basta que os valores do humanismo sejam proclamados, é preciso que eles prevaleçam nas relações entre os países e os povos.
Nossa política externa está firmemente orientada pela busca da paz, da solução negociada dos conflitos internacionais e pela defesa intransigente dos nossos interesses nacionais.
A paz não é só um objetivo moral. É, também, um imperativo de racionalidade. Por isso, defendemos que as controvérsias sejam solucionadas por vias pacíficas e sob a égide das Nações Unidas. É necessário admitir que, muitas vezes, a pobreza, a fome e a miséria são o caldo de cultura onde se desenvolvem o fanatismo e a intolerância.
A preservação dos interesses nacionais não é incompatível com a cooperação e a solidariedade. Nosso projeto nacional não é xenófobo e, sim, universalista. Queremos aprofundar nossas relações com os países da América do Sul, desenvolvendo com eles uma integração econômica, comercial, social e política.
Queremos negociar cada vez mais positivamente com os Estados Unidos, a União Européia e os países asiáticos.
Teremos, na condição de país que possui a segunda maior população negra do mundo, um olhar especial para o continente africano, com o qual temos laços étnicos e culturais profundos.
Quero convidar a todos os que aqui se encontram, nessa montanha mágica de Davos, a olhar o mundo com outros olhos. É absolutamente necessário reconstruir a ordem econômica mundial para atender aos anseios de milhões de pessoas que vivem à margem dos extraordinários progressos científicos e tecnológicos que um ser humano foi capaz de produzir.
Não fiquem indefinidamente esperando sinais para mudarem de atitude em relação ao meu país e aos países em desenvolvimento. Os povos, como os indivíduos, precisam de oportunidades. Os países ricos de hoje só o são porque tiveram as suas oportunidades históricas.
Se querem ser coerentes com a sua experiência vitoriosa, não podem e não devem obstruir o caminho dos países em via de desenvolvimento. Ao contrário, podem e devem construir conosco uma nova agenda de desenvolvimento global compartilhado.
Tenham certeza de que o Brasil já começou a mudar. Nossa determinação é resultado não somente de compromissos que assumimos há muitos anos, mas decorre, também, da esperança que mobiliza o nosso país. Sei que no debate contemporâneo há divergências, visões de mundo distintas, até mesmo antagônicas.
Sou o presidente de todo o povo brasileiro e não apenas daqueles que votaram em mim. Estamos construindo um novo contrato social, em que todas as forças da sociedade brasileira estejam representadas e sejam ouvidas.
Assim, busco a interlocução com todos os setores que serão reunidos no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Vou buscar contatos e pontos de apoio para os nossos projetos de mudar a sociedade brasileira, onde quer que eles estejam.
A mudança que buscamos não é para um grupo social, político ou ideológico. Ela beneficiará mais os desprotegidos, os humilhados, os ofendidos e os que, agora, vêem com esperança a possibilidade de redenção pessoal e coletiva. Essa é uma causa de todos. Ela é universal por excelência.
Como o mais extenso e o mais industrializado país do hemisfério sul, o Brasil se sente no direito e no dever de dirigir aos participantes do Fórum de Davos um apelo ao bom senso. Queremos fazer um apelo para que as descobertas científicas sejam universalizadas para que possam ser aproveitadas em todos os países do mundo.
Na mesma linha, proponho a formação de um fundo internacional para o combate à miséria e à fome nos países do terceiro mundo, constituído pelos países do G-7 e estimulado pelos grandes investidores internacionais. Isso porque é longo o caminho para a construção de um mundo mais justo e a fome não pode esperar.
Meu maior desejo é que a esperança que venceu o medo, no meu país, também contribua para vencê-lo em todo o mundo. Precisamos, urgentemente, nos unir em torno de um pacto mundial pela paz e contra a fome.
E, fiquem certos, o Brasil fará a sua parte.
Muito obrigado.
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