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Furtado explicou nosso atraso, diz economista

(28/11/04)


MARCOS ANTONIO CINTRA
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS

Ricardo Bielschowsky, 55, economista da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), vê na obra de Celso Furtado a mais importante contribuição feita no Brasil para a compreensão do subdesenvolvimento e das estratégias para superá-lo.
Morto há oito dias, aos 84 anos, Furtado foi, na opinião de Bielschowsky, um homem de ação e um militante do desenvolvimentismo, mas nunca um panfletário.
Na entrevista que segue, o economista analisa a importância central de Celso Furtado na formação do desenvolvimentismo e afirma que a sua obra é muito atual, mesmo depois da derrocada daquele ciclo histórico.
Ricardo Bielschowsky é autor de "Pensamento Econômico Brasileiro - O Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo: 1930-1964" (Contraponto) e organizador da coletânea "Cinqüenta Anos de Pensamento na Cepal" (editora Record).


Folha - O que mais impressiona na obra intelectual de Furtado?
Ricardo Bielschowsky - A qualidade, o volume e o poder de influenciar. Além de inúmeros artigos e ensaios, são 30 livros, publicados em 11 idiomas. A estimativa é de uns 2 milhões de exemplares vendidos, o que significaria uns 10 milhões de leitores. É o cientista social brasileiro mais lido no Brasil e no exterior. A influência no Brasil foi incomparável, sobre várias gerações de acadêmicos e profissionais de distintas áreas.

Folha - O que explica esse poder de influenciar?
Bielschowsky - Capacidade analítica, ousadia, criatividade, entusiasmo. Foi um desbravador do conhecimento sobre a realidade brasileira e latino-americana, com fino sentido de construção de um projeto nacional. Ele se definiu como um intelectual engajado, a serviço da ação. Foi um militante da causa desenvolvimentista, mas nunca panfletário, sempre um acadêmico, um professor.


Folha - Que importância tem a Cepal em sua trajetória intelectual?
Bielschowsky - O fato mais importante dessa trajetória foi seu encontro com Raul Prebisch em 1949. O jovem Furtado estava em busca de uma explicação teórica para o subdesenvolvimento brasileiro e latino-americano, que estava sendo construída naquele momento na Cepal, em Santiago do Chile. Furtado foi um interlocutor privilegiado e se tornaria um co-autor da teoria do subdesenvolvimento periférico latino-americano. Contribuiu decisivamente para o que veio a ser chamado de método de análise histórico-estrutural, um sistema analítico voltado à interpretação das transformações nas estruturas econômicas, políticas, institucionais, culturais, a partir da perspectiva histórica de médio e longo prazo.


Folha - Quais seus aspectos centrais?
Bielschowsky - Parte-se da caracterização das economias periféricas por contraste às centrais e teoriza-se sobre a inserção internacional da América Latina. Nesse sistema, primeiro, na periferia há uma baixa diversificação da estrutura produtiva, determinando uma pressão simultânea por investimentos em vários setores, e tornando o processo de industrialização muito exigente em termos de poupança/investimento e de divisas. Segundo, a pressão por divisas enfrentava-se com insuficiente exportação devido a especialização em bens primários, porque os mercados para esses produtos se expandiam pouco e porque as relações de troca se deterioravam. Terceiro, havia forte heterogeneidade tecnológica, com alguns setores operando com produtividade elevada e a grande maioria com produtividades reduzidas; resultando em produtividade média baixa e em reduzido excedente ou poupança como proporção da renda.


Folha - Como surgiu o livro "Formação Econômica do Brasil"?
Bielschowsky - Esse livro é a demonstração prática do método histórico-estrutural para o exame das transformações econômicas. É uma obra genial de legitimação histórica da abordagem estruturalista sobre o subdesenvolvimento brasileiro. O que ele faz? Mostra como a formação do Brasil foi gerando uma economia com baixa diversificação produtiva, reduzida produtividade média e oferta abundante de mão-de-obra em níveis de subsistência.


Folha - Ele mostra isso através dos ciclos históricos no Brasil?
Bielschowsky - Argumenta que o ciclo do açúcar não criou mercado interno capaz de gerar uma economia diversificada. Mas gerou uma vasta economia de subsistência, que se perpetuou quando o ciclo do açúcar entrou em retração. O ciclo do ouro foi semelhante (apesar de maior fluxo de renda monetária). No ciclo do café, Furtado enfatizou a dispersão do escravo liberto, reforçando vasta economia de subsistência.


Folha - O que pensava dos empresários?
Bielschowsky - Afirmava que o empresariado era pouco agressivo e lento para a incorporação de novas técnicas e que a classe proprietária agrícola era pouco vocacionada para o investimento e o progresso técnico, pois dedicada ao consumo conspícuo de bens com alto coeficiente importado.


Folha - Que papel teve nas políticas de desenvolvimento?
Bielschowsky - A industrialização em curso na América Latina era um processo problemático, que continha tendências perversas: desequilíbrios estruturais do balanço de pagamentos e inflação que podia ser causada por fatores estruturais, isto é, nem sempre por expansão monetária. Mais tarde, Furtado incluiria a tendência à preservação de subemprego. O corolário desse diagnóstico foi o de que a industrialização problemática requeria planejamento e apoio do Estado, que deveria capacitar-se para conferir eficiência e sustentabilidade ao processo de industrialização.


Folha - O que diferencia a corrente nacionalista das demais correntes desenvolvimentistas?
Bielschowsky - As diferenças incluíam a idéia do controle por agentes nacionais, privados e estatais, dos centros de decisão sobre poupança/investimento; a necessidade de gerar autonomia financeira com relação a fontes internacionais de capital; e maior sensibilidade com relação às questões ligadas a distribuição da renda, entre setores econômicos, classes sociais e regiões.


Folha - A Sudene é um exemplo dessa ênfase redistributivista?
Bielschowsky - Sem dúvida. Furtado argumentava que o Nordeste perdia sistematicamente renda e recursos produtivos para o restante do país, e que era necessário inverter o processo mediante uma política específica. Convenceu Juscelino e criou a Sudene.


Folha - O livro "Desenvolvimento e Subdesenvolvimento" tem a mesma importância de "Formação Econômica do Brasil"?
Bielschowsky - No campo da teorização sobre desenvolvimento, é a obra mais importante de Furtado. Foi publicada em 1961, compilando ensaios escritos no final dos anos 50. A outra, igualmente relevante, é "Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico".


Folha - Que idéias destacaria no livro de 1961?
Bielschowsky - Primeiro, o subdesenvolvimento deve ser entendido como uma das linhas históricas de projeção do capitalismo industrial cêntrico em âmbito global. Ele se dá por meio da expansão de empresas capitalistas modernas sobre estruturas sociais arcaicas, formando economias híbridas, profundamente heterogêneas. Essa discussão estará no âmago da "teoria da dependência", ao longo dos anos 60.
Segundo, o subdesenvolvimento é um "processo histórico autônomo", que tende a se perpetuar, e que não pode ser considerado uma etapa do desenvolvimento econômico pela qual têm de passar todos os países, sob pena de subestimar a mobilização social e política necessária para superá-lo.
Terceiro, talvez mais importante para a discussão sobre o modelo de desenvolvimento brasileiro nas décadas seguintes, a estrutura ocupacional, com oferta abundante de mão-de-obra, se altera nas economias desenvolvidas de forma lenta, porque o progresso técnico importado dos países cêntricos seria inadequado à absorção dos trabalhadores ligados à vasta economia de subsistência. Segue-se que o sistema tenderia à concentração de renda e à injustiça social.


Folha - Esse seria o ponto de partida do debate brasileiro sobre modelos de desenvolvimento?
Bielschowsky - O livro é a matriz da qual parte Furtado para a análise da relação entre crescimento e distribuição de renda nas condições da periferia subdesenvolvida. Aliás, com Furtado, a expressão "desenvolvimento" passa a ser entendida como crescimento integrado a redução das desigualdades sociais. Mas sua contribuição é analítica, ele inaugurou no país e na América Latina mais ou menos concomitantemente com Aníbal Pinto e Maria da Conceição Tavares a discussão sobre padrão ou modelo de crescimento.
Isso vai aparecer, por exemplo, nos livros "Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina" e "Análise do Modelo Brasileiro". Esses livros pautaram a discussão sobre o modelo brasileiro de desenvolvimento. Furtado integrou dois conjuntos de elementos: o perfil da oferta de bens e sua transformação e o perfil da demanda de bens, que refletiria a composição do emprego, dos salários e da distribuição de renda.


Folha - Isso é estruturalista?
Bielschowsky - Sim, mais uma vez, é uma análise que contrasta a "periferia" com o "centro". Agora, discutindo não apenas as diferenças na estrutura produtiva mas também na distributiva.


Folha - Explique, por favor, um pouco melhor essa idéia.
Bielschowsky - Para Furtado, a história latino-americana seria muita distinta da que ocorre nos países centrais, onde o aumento de produtividade eleva salários reais, aumentando a demanda e provocando crescimento e produtividade, num circulo cumulativo virtuoso. Aqui seria diferente.


Folha - Quais as diferenças?
Bielschowsky - A composição da demanda para os setores capitalistas modernos reflete as estruturas de propriedade e renda concentradas, predeterminando uma evolução da composição da oferta semelhante à dos países desenvolvidos; mas, aqui, a oferta ilimitada de mão-de-obra impede que o aumento de produtividade se traduza em aumento de salários. Lá e aqui, a tecnologia adotada e a elevação de escala significam crescente aumento na relação capital/trabalho, mas no nosso caso a abundância de mão-de-obra vai motivando, dinamicamente, a concentração da renda. Só uma redistribuição de renda e a conseqüente recomposição dos investimentos permitiriam uma trajetória de expansão com mais emprego e maior justiça social.


Folha - Que outras idéias de Furtado persistem?
Bielschowsky - Muitas, pois as assimetrias entre "centro" e "periferia" que ele sempre apontou persistem, apesar de terem adquirido uma nova configuração. Nos últimos tempos, Furtado passou a referir-se às tendências problemáticas da globalização, mas a base analítica da argumentação não mudou. Continuou sendo o atraso relativo com relação ao centro, e as políticas desenvolvimentistas que deveriam ser adotadas. Não persiste uma enorme inferioridade produtiva e tecnológica, relativamente aos países desenvolvidos? Não persiste uma enorme vulnerabilidade externa, muito superior àquela que afeta os países desenvolvidos? Não persiste um enorme subemprego? A reforma agrária e o fomento à agricultura familiar não continuam necessários?


Folha - Mas não terá a agenda desenvolvimentista mudado?
Bielschowsky - A agenda desenvolvimentista mudou, adequando-se às condições atuais. Afinal, a economia está aberta, a capacidade financeira do Estado é menor, a etapa básica de montagem do parque industrial terminou. Mas persiste a necessidade de se contar com um Estado que apóie o crescimento, o progresso técnico, o aumento da produtividade e da competitividade, uma melhor inserção internacional e menor vulnerabilidade externa, e uma estratégia de crescimento que contemple a sociedade como um todo, e que integre crescimento e redistribuição de renda. O trabalho intelectual de Furtado tem profunda atualidade.



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